ESTRUTURA DO SERMÃO
“Já se os homens se comeram depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos, assim como vós.”
Vieira profere o Sermão de Santo António aos Peixes a 13 de Junho (dia de Santo António no calendário litúrgico) de 1654, véspera da sua partida para Lisboa, uma vez que pretendia colocar o rei, D. João IV, a par do que se passava no Maranhão.
Com este sermão procuraria impressionar e comover o auditório em relação às atrocidades que eram cometidas pelos colonos portugueses contra os índios. Vieira, enquanto jesuíta, não podia condescender com leis que permitiam a desumana exploração da mão-de-obra indígena nos engenhos do açúcar no Brasil. O tema central deste sermão é, pois, a denúncia das crueldades de que os índios eram vítimas e uma verdadeira sátira contra os vícios e os desmandos dos homens.
CONCEITO PREDICÁVEL – SIMBOLISMO
O conceito predicável - vos estis sal terrae (vós sois o sal da terra) - é uma inscrição em latim do evangelho de S. Mateus, que funciona como a confirmação, através da Sagrada Escritura, do tema inicial.
O valor simbólico do sal aparece, assim, ligado ao poder regenerador e purificador da palavra de Deus. O verdadeiro sal é aquele que evita a corrupção e aquele que não salga é inútil e deve ser desprezado, lançado fora para ser pisado por todos. O sal, neste sermão, são os pregadores que não cumprem (muitos deles) a sua verdadeira função: salgar a terra.
EXÓRDIO (CAPÍTULO I)
Apresentação do tema, partindo de uma citação bíblica, o conceito predicável (vos estis sal terrae): denúncia dos vícios e louvor das virtudes;
Exploração do tema: definição das propriedades do sal (conservar e evitar a corrupção) e das qualidades dos Pregadores (louvar o bem e impedir o mal);
Constatação da corrupção da terra pelo mal e pelo vício (“Não é tudo isto verdade? Ainda mal.”) e definição das causas de tal situação:
A terra está corrompida, porque o sal (pregadores) não salga:
- Os pregadores não pregam a verdadeira doutrina;
- Os pregadores dizem uma coisa e fazem outra;
- Os pregadores pregam-se a si e não a Cristo.
A terra está corrompida, porque a terra (ouvintes) não se deixa salgar:
- Os ouvintes não querem receber a verdadeira doutrina;
- Os ouvintes querem imitar o que os pregadores fazem e não o que eles dizem;
- Os ouvintes querem servir os seus apetites em vez de servir a Cristo.
Resolução: o sal que não salga, como aconselha Cristo, deve ser lançado fora como inútil, para ser pisado por todos (sugestão do desprezo a que devem ser votados os pregadores que não divulgam a Palavra de Deus); perante a terra que não se deixa salgar, ou seja, evangelizar, o orador lembra o exemplo de Santo António, que mudou de púlpito e de auditório, pois não sendo ouvido pelos homens, resolveu pregar aos peixes, tal como o fará António Vieira.
EXPOSIÇÃO E CONFIRMAÇÃO (CAPÍTULOS II - V)
A partir do capítulo II até ao final do sermão, todo o texto é uma alegoria, uma vez que o auditório são os peixes-gente. Com a sua ironia sábia, Vieira explica-lhes como se vai processar o seu discurso. Primeiro irá louvar-lhes algumas virtudes, mas acima de tudo, irá censurar-lhes com acutilância os vícios e crueldades.
Louvor das virtudes dos peixes
O pregador começa por destacar, em geral, algumas virtudes dos peixes, louvando o facto de terem sido as primeiras criaturas criadas por Deus e existirem em maior número sobre todas as espécies. Além disso, reconhece as suas qualidades de ouvintes («ouvem e não falam») e o facto de manifestarem uma postura de obediência, devoção e prudência perante a palavra de Deus, atendendo ao episódio em que Santo António fez destas criaturas o seu auditório, na cidade de Arimino. No entanto, para o pregador, as virtudes naturais dos peixes não disfarçam o seu maior defeito: são eles «gente que nunca se há-de converter».
Destacando, em particular, as virtudes de alguns peixes, António Vieira vai pôr em evidência:
PEIXE DE TOBIAS – simboliza o poder curativo e é comparado ao próprio Santo António, pelo seu bom coração, que afasta os demónios, e pelo seu precioso fel, que cura a cegueira, tal como as palavras duras do Santo curam a cegueira das almas, ou seja, os vícios e perversões dos homens;
RÉMORA – sendo um peixe tão pequeno, é comparado à língua de Santo António pela sua força e determinação na conversão dos pecadores;
TORPEDO – assim como este peixe faz tremer o pescador com as descargas eléctricas que provoca para se defender, também as palavras de Santo António fazem tremer o auditório;
QUATRO-OLHOS – simbolizando a vigilância atenta aos perigos que podem vir de qualquer lado, ensina ao pregador a compreender que há um céu que premeia a boa conduta dos homens e o inferno que castiga as suas perversões.
Repreensão dos vícios dos peixes
A partir do capítulo IV, António Vieira vai enumerar os vícios e más condutas dos peixes, primeiramente de uma formal global, depois citando também quatro peixes. Tendo em conta o conceito de «universal antropofagia», Vieira censura nos peixes o facto de se comerem uns aos outros, com a agravante de serem sempre e continuamente os grandes a comerem os mais pequenos, lembrando que são os mais poderosos a explorarem de forma cruel e humilhante os mais desfavorecidos. Além disso, o pregador critica nos peixes a sua cegueira, ignorância e vaidade, tal como o fará nos homens.
Atendendo agora ao particular, Vieira cita a conduta de quatro peixes que em tudo fazem lembrar a mesquinhez e hipocrisia dos homens:
RONCADORES – simbolizam a arrogância, a cobiça e a vaidade;
PEGADORES – simbolizam a dependência, o parasitismo e o oportunismo;
VOADORES – representam a ambição, o capricho e a presunção;
POLVO - é, para o pregador, símbolo dos mais «perniciosos» vícios dos homens e, por isso, serve-se dele para, de uma forma implacável, censurar a hipocrisia, a malícia, o fingimento e a corrupção moral dos colonos portugueses, responsáveis pela dizimação e escravização dos índios brasileiros. Na sua apresentação, o pregador diz que o referido animal parece um «monge», uma «estrela», a personificação da «mansidão» e da «brandura; porém, por detrás da sua aparência tão modesta, é «o maior traidor do mar». Enquanto a capacidade para se camuflar no camaleão é «gala» (ostentação) e em Proteu é uma espécie de defesa, no polvo é «malícia», «traição», porque consegue surpreender as vítimas desacauteladas, de forma enganosa («…e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano…»). Assim, este peixe «aleivoso e vil» é comparado a Judas, pois é traiçoeiro, embora consiga ser pior do que o apóstolo («...Judas em tua comparação já é menos traidor!»).
PERORAÇÃO (CAPÍTULO VI)
A Peroração constitui uma conclusão com a utilização de um desfecho forte, capaz de impressionar o auditório e levá-lo a pôr em prática os ensinamentos do pregador. Retomando alguns argumentos utilizados ao longo do seu discurso, o orador quer que os homens imitam os peixes, isto é, guardem respeito e obediência a Deus. Numa palavra, pretende que os homens se convertam.
Depois de ter inventariado os louvores e os defeitos dos peixes/homens, o pregador não poderia deixar de apelar aos ouvintes para que louvem a Deus. A escolha do hino Benedicite cumpre fielmente esse objectivo, encerrando o Sermão com um tom festivo, adequado à comemoração de Santo António, cuja festa se celebrava. A palavra Ámen significa "Assim seja", "que todos louvem a Deus". O quiasmo realizado na colocação em ordem inversa das palavras glória e graça sugere a transposição dos peixes para os homens: já que os peixes não são capazes de nenhuma dessas virtudes, sejam-no os homens. Sugere também uma mudança: a conversão, porque só em graça os homens podem dar glória a Deus.